EDIÇÃO DE HOJE, DOMINGO, DIA 15 DE ABRIL DE 2012
QUERIDOS AMIGOS, QUERIDAS AMIGAS Como hoje é domingo,dia de descontração, estamos encaminhando para a leitura de todos esta crônica de Walcyr Carrasco. Não tenham isto como provocação. Fazemos parte deste grupo de provectos. Estamos praticando uma máxima antiga para amenizar nossas indignações da semana que passou: RIDENDO CASTIGAT MORES. Só assim podemos tocar este barco sem perder o rumo. Não dá para ser diferente.
O dente e a criatura
WALCYR CARRASCO
Walcyr Carrasco é jornalista, autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão.
Não sou santo. Aliás, quem é? Faz algum tempo uma criatura de 18 anos começou a me escrever pelo Twitter. Falava de sua admiração por minhas novelas, por meus livros que leu quando criança. Adorei os elogios. Concluí se tratar de uma figura inteligente e criativa. Nunca senti atração por alguém tão mais jovem. Mas tremi nas bases quando a criatura me enviou a seguinte mensagem privada: “Sonhei que nos encontramos na praia. E nos beijamos. Depois...”.
O “depois” vocês adivinham. Só conto que era um depois com tudo a que um depois tem direito. Respondi, animado:
– Pode me enviar suas fotos?
A criatura mandou. Nenhuma explícita, mas... Propus:
– Que tal a gente passar uns dias na praia?
– Topo!
Preveni, cauteloso:
– Não tenho barriguinha de tanque.
– Não me importo com essas coisas.
– Estou gordo.
– O que vale é o seu espírito!
Resolvi pedir conselho a meu amigo Júlio, que abençoa todas as loucuras. Outro qualquer seria contra.
– Você acha 42 anos de idade uma diferença grande para um casal?
– Ahnnn?
– Bem, não tanto assim. Só 41 e meio.
– Ah, bom!
Respondeu o que eu esperava:
– Está na hora de você se apaixonar.
Listamos exemplos de felicidade entre gerações. Percorremos o rol de celebridades, como o vice-presidente Michel Temer, de 70, casado com a gatíssima Marcela, de 27. Falamos também dos mais próximos. “O que vale é a química”, concluí.
A criatura veio do interior de São Paulo. Busquei-a no aeroporto e fomos diretamente para minha casa no Litoral Norte de São Paulo. Chegamos ao anoitecer. Tudo era romântico: a noite linda, a lua linda, as árvores lindas. Já me via casado. Queria pegar na mão. Falar de coisas belas.
Antes fui me exibir na cozinha. Assei um frango bem temperado. Fiz arroz e salada. Abri um vinho. A criatura sentou-se à mesa, encantada. Destrinchei o frango.
– Só quero um pedacinho do peito – disse ela, que, é claro, vive de regime.
Busquei-a no aeroporto e fomos direto para a praia. Preparei um jantar. Mordi o frango – e meu dente caiu
Servi. Botei uma coxa no meu prato. Ela mordeu delicadamente um pedacinho de frango. Agarrei a coxa com a mão e enfiei na boca. Adoro comer frango com a mão. Mordi.
Meu dente da frente caiu.
Tentei encaixar. Impossível. Caiu de novo.
Era uma prótese, claro. Só tenho a raiz.
– Meu dente caiu! – exclamei.
A criatura me avaliou com vagar. Sorri de boca torta.
– Acho que dá para disfarçar.
– Não tem jeito. Dá para ver a falha – respondeu. E sorriu com seus lindos dentes de 18 aninhos.
– Pelo menos você disse que o importante é o espírito!
Silêncio expressivo.
Respirei fundo:
– Quer dizer, lembrei da nossa conversa sobre barriguinha de tanque. A gente já trocou mensagem e conversou no carro sobre assuntos profundos: sua escova progressiva, embora eu prefira cabelos cacheados, o último filme de Harry Potter que temos de ver juntos e o vestibular que você vai prestar. A gente não precisa de dente para se dar bem, não é?
Silêncio ainda mais expressivo.
Resolvi ser romântico:
– Vamos passear na praia, olhar a lua?
Caminhamos pela orla, as ondas batendo nos pés.
– Aqui não dá para ver que perdi o dente.
– Dá sim, por causa do luar.
Quase xinguei a lua. Parti para o ataque e a beijei. Já tentou beijar sem o dente da frente? Entra um ventinho pela fresta. Parece que tem uma janela aberta na boca. Nos afastamos constrangidos. Voltamos em silêncio. A criatura foi diretamente para o quarto de hóspedes e se trancou. Ouvi o ruído do secador uns 50 minutos. Depois acho que adormeceu.
Acordei tarde. A criatura já fora para a praia, tinha tomado sol e se enturmado com uma galera com quem talvez jogasse videogame à tarde. Sentou-se, enquanto eu mordia cuidadosamente uma fatia de mamão. Peguei os comprimidos de meu tratamento ortomolecular. Um deles caiu no chão.
– É outro dente? – quis saber.
Acabou aí a viagem. Voltamos imediatamente. E a deixei no aeroporto. Tranquei-me até o dentista restituir meu sorriso de piano. Se conto a minha saga é porque ela é universal. Um dente pode simbolizar o abismo entre gerações. E não vamos nos enganar. Na batalha entre o corpo e o espírito, algumas vezes o espírito pode vencer. Mas só algumas. Banguela romântico não rola. O amor precisa de dentes.
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